quinta-feira, 10 de maio de 2012

Última Mente


Eu tenho andado muito musical ultimamente.
Não sei por que cargas d’água
Tenho afogado minhas mágoas
Ao som de poetas, músicos e bêbados permanentes.
A música abre meus caminhos, ilumina meus sonhos
Corre em minhas veias.
Na rua o menino morre de frio, sem cobertor
Com fome, sem meias.
Do frio da rua aos pés na Lua, a solidão é a mesma.
É a lesma, nojenta e lenta, que atormenta o ofício
Que leva ao tédio e ao vício.
Eu deveria agradecer, diante da música
Por ter ouvidos para ouvir.
E é o que acabo fazendo invariavelmente.
Aliás, é o mínimo que posso fazer.
Mas o que posso fazer?
Se em todo canto ouço o canto da sereia
Se me atrapalho com traços, troços e teias
Se o atalho que me oferecem quase sempre é desonesto.
Afinal, no final a culpa sempre é dos outros ou do resto...
E eu me perdoo dando esmolas no primeiro sinal.
Eu venho achando tudo normal ultimamente.
Desde a bala perdida ao corpo fechado
Da falta de assunto ao lixo amontoado
Da falta de procura ao excesso de oferta
Da falta de cultura à TV aberta
Da esperança que se tem ao voto que não se acerta.

Eu tenho andado muito emocionado ultimamente
E de emoção o meu coração se alimenta.
Lá fora, a chuva fria é de cortar o coração...
Dito assim, à luz do dia, como poesia, não parece ruim
Mas cortar mesmo o coração
É descobrir o vazio por dentro
É escancarar a falta de sentimento
De corações ocos
De quem se importa muito pouco com a vida alheia.
Mas é a música, é o canto das sereias...
A cada estação da vida, mais cheio o trem
Mais vazio o estômago.
Dentro do meu carro blindado
Atrás das grades do meu jardim
Estou bem alimentado.
Sentado à mesa, vazia, além de mim
Tomo o chá das cinco.
À moda antiga, o rádio toca:
A lua furando o nosso zinco
E eu nem me toco que faço parte
Desse estranho festival.
Eu tenho andado atrás de um ideal.
O sujeito tem de ter um objetivo na vida!
O que vim fazer por aqui?
Essa história de não tô nem aí
Tem validade...
Depois de certa idade
É sempre mais difícil dizer sim ou não.
É quando o medo inventa o talvez.
Eu queria pelo menos uma vez
Olhar no espelho e, olho no olho, me dizer:
Missão cumprida.
Enquanto isso não acontece
Vou levando a vida...
O coração finge que não vê, ou esquece.
E eu sei por que cargas d’água
Vou afogando minhas mágoas
No bloco dos eus sozinhos...
Na falta de caminhos ou de crença
Não importa de que lado
Contanto que se vença
Nesse mar de gente, sigo em frente
Pecando o pior dos pecados
A indiferença.

Gerson Jorge

Um comentário:

Vivian ॐ disse...

Transformação de um cotidiano muito denso numa poesia muito bonita, sutil desde seu título. Muito linda!